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Kafka tem um rival. O Ministério dos Negócios Estrangeiros dá-nos lições sobre direitos humanos
John Pilger; 1 de Dezembro de 2008
Hoje (1 de Dezembro), um evento surrealista terá lugar no centro de Londres. O Ministério dos Negócios Estrangeiros organiza um dia aberto para «sublinhar a importância dos Direitos Humanos no nosso trabalho como parte do 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem». Haverá vários “palcos” e “painéis de discussão” e o ministro dos Negócios Estrangeiros, David Miliband, apresentará um prémio de Direitos Humanos. Será isto uma paródia? Não. O Ministério dos Negócios Estrangeiros quer elevar a nossa «consciência sobre direitos humanos». Kafka e Heller têm muitos imitadores.
Não haverá palco para os habitantes das Ilhas Chagos, os 2.000 cidadãos britânicos expulsos da sua terra natal no Oceano Índico, combatidos pelo governo de Miliband a fim de impedi-los de retornar ao que é agora uma base militar dos EUA e um suspeito centro de tortura da CIA. O Supremo Tribunal reiteradamente restaurou este direito humano fundamental aos ilhéus, a essência da Magna Carta, descrevendo as acções do Ministério dos Negócios Estrangeiros como «ultrajantes», «repugnantes» e «ilegais». Não importa. Os advogados de Miliband recusaram-se a desistir e foram salvos a 22 de Outubro pelos julgamentos transparentemente políticos de três membros da Câmara dos Lordes.
Não haverá palco para as vítimas de uma política britânica sistemática de exportar armas e equipamento militar para dez dos 14 países mais pobres e exangues pela guerra de África. No seu discurso de hoje, com a boa gente da Amnistia e da Save The Children a assistir, o que dirá Miliband às vítimas desta violência patrocinada pelos britânicos? Talvez mencione, como frequentemente faz, a necessidade de “boa governação” em lugares longínquos, enquanto o seu próprio regime suprime uma investigação do Serious Fraud Office [Gabinete de Grandes Fraudes] aos negócios de armas de 43 milhões de libras da BAE com a tirania corrupta na Arábia Saudita – com a qual, notou o ministro dos Negócios Estrangeiros Kim Howells em 2007, os britânicos têm «valores em comum».
Não haverá palco para os iraquianos cuja vida social, cultural e real foi esmagada por uma invasão não provocada baseada em comprovadas mentiras. Será que o ministro dos Negócios Estrangeiros pedirá desculpa pelas bombas de fragmentação que os britânicos têm espalhado, que ainda rebentam as pernas de crianças, ou pelo urânio empobrecido e outros produtos tóxicos que têm feito com que o cancro consuma vastas camadas populares do Sul do Iraque? Será que falará acerca do direito humano ao conhecimento e anunciará o desviar de uma parte dos milhares de milhões destinados a resgatar a City [centro financeiro] de Londres, para restaurar aquele que era um dos melhores sistemas escolares do Médio Oriente, obliterado como consequência da invasão anglo-americana, e para os museus e editoras e livrarias, e professores, historiadores, antropologistas e cirurgiões? Será que anunciará o envio de simples anestésicos e seringas para hospitais que antes tinham quase tudo e hoje nada têm, num país onde os governos britânicos, especialmente o seu, lideraram o bloqueio à ajuda humanitária, incluindo a proibição de Kim Howells à entrada de vacinas para proteger crianças de doenças evitáveis?
Não haverá palco para a gente de Gaza cuja maioria, diz a Cruz Vermelha Internacional, está ameaçada de fome, em particular as crianças. Prosseguindo uma política de reduzir um milhão e meio de pessoas a uma existência hobbesiana, os israelenses cortaram a maioria dos suportes de vida. David Miliband esteve recentemente em Jerusalém, a uma curta distância de voo de helicóptero do povo cativo de Gaza. Não foi lá e nada disse sobre os seus direitos humanos, preferindo palavras dúplices acerca de uma “trégua” entre atormentador e vítimas.
Não haverá palco para os sindicalistas, estudantes, jornalistas e defensores dos direitos humanos assassinados na Colômbia, um país onde as “forças de segurança” do governo são treinadas por britânicos e americanos, e são responsáveis por 90 por cento das torturas, diz um novo estudo do grupo de direitos humanos britânico, Justice for Colombia. O Ministério dos Negócios Estrangeiros diz que está a «melhorar o registro de direitos humanos dos militares e a combater o tráfico de droga». O estudo não encontra um vestígio de evidência que suporte isto. Agentes colombianos implicados em homicídios são recebidos no Reino Unido para “seminários”.
Não haverá palco para a história, para a nossa memória. Arquivados nas grandes bibliotecas britânicas e arquivos documentais, ficheiros oficiais desclassificados dizem a verdade acerca das políticas britânicas e dos direitos humanos, desde atrocidades oficialmente avalizadas em campos de concentração no Quénia colonial e o armamento do genocida general Suharto na Indonésia, até ao fornecimento de armas biológicas a Saddam Hussein na década de 1980.
Enquanto ouvimos o zumbido moralista de ex-militares britânicos “peritos em segurança” dizendo-nos o que pensar acerca dos terríveis eventos em Bombaim, podemos lembrar-nos do papel histórico britânico como parteiro do extremismo violento no Islão moderno, desde a ascensão da Irmandade Muçulmana no Egipto na década de 1950 e o derrube do governo democrático liberal do Irão, ao armamento pelo MI6 dos mujahedin afegãos, os taliban em processo de formação. O objectivo era, e continua a ser, a negação do nacionalismo a povos lutando para ser livres, especialmente no Médio Oriente, onde o petróleo, diz um documento secreto do Ministério dos Negócios Estrangeiros de 1947, é «um prémio vital para qualquer potência interessada na influência e dominação mundial». Os direitos humanos estão quase totalmente ausentes desta memória oficial, ao contrário do medo de ser descoberto. A expulsão secreta dos habitantes das ilhas de Chagos, diz um memorando do Ministério dos Negócios Estrangeiros de 1964, «devia ser cronometrada de modo a atrair o mínimo de atenção e devia ter alguma cobertura lógica [de modo a não] levantar suspeitas acerca do seu propósito».
Como é que se perpetua este país das maravilhas? Os media desempenham o seu papel histórico, seguindo a linha do poder, censurando por omissão. Roland Challis, que era o correspondente da BBC no Sudeste Asiático quando Suharto estava a chacinar centenas de milhares de alegados comunistas na década de 1960, disse-me: «Foi um triunfo para a propaganda ocidental. As minhas fontes britânicas alegavam não saber o que se passava, mas sabiam… Os navios de guerra britânicos escoltaram um navio cheio de soldados indonésios através dos Estreitos de Malaca para que eles pudessem tomar parte nesse terrível holocausto».
Hoje, a propaganda das relações públicas vestida de erudição promove o mesmo poder predatório britânico, enquanto procura fixar as fronteiras da discussão pública. Um relatório foi publicado na semana passada pelo Institute for Public Policy Research, que se descreve a si mesmo como «o mais proeminente think tank progressista do Reino Unido». Tendo sido esvaziado do seu significado etimológico, o antes nobre termo “progressista” junta-se a “democracia” e “centro-esquerda” no rol de mentiras. Lord George Robertson, o novo falcão de guerra do New Labour, devoto do submarino Trident e antigo chefe da NATO, tem a sua assinatura na capa, junto com Paddy Ashdown, antigo vice-rei dos Balcãs. Confortavelmente baseado em clichés de gestão de crises, o relatório do IPPR (“Destinos Partilhados”) é um «apelo à acção» porque «estados fracos, corruptos e falhados tornaram-se maiores riscos de segurança que os fortes e competitivos». Sem mencionar o terror dos estados ocidentais, a o «apelo» é à NATO em África e à intervenção militar «se considerada necessária».
Há uma concordância quanto à “percepção” de que a actual “intervenção” anglo-americana em terras muçulmanas potencia o terrorismo na Grã-Bretanha: o que é ofuscantemente óbvio para a maioria das pessoas. Em Fevereiro de 2003, quase 80 por cento dos londrinos sondados acreditava que um ataque britânico ao Iraque «tornaria mais provável um ataque a Londres». Foi exactamente esta a advertência feita a Blair pelo Joint Intelligence Committee. A advertência não é menos urgente enquanto “nós” continuamos a atacar os países de outras povos e a permitir que falsos campeões roubem os direitos humanos de todos nós.
quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009
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